Horror & Creepy |
DOIS DE MARÇO, SEGUNDA-FEIRA. Este infortúnio que me acomete durante as madrugadas poderia ser visto como natural no caso da maioria das pessoas que vivem em uma situação semelhante, mas no meu caso não é, por mais incrível que pareça.
Sempre vivi o momento, uma sucessão deles, um de cada vez, e cada um se desdobrando numa sequência de frações menores. Entre hoje e amanhã, existe para mim um grande naco de vida a ser vivido, nunca pensei no futuro de outra forma. Não! O meu destino está aqui, é agora. Também não tenho arrependimentos, sempre vivi sem pudores a vida que quis e nunca tive expectativas ou preocupações quanto ao no que os meus atos e gostos poderiam resultar. Simplesmente aceito, resignado, o que vier como consequência das escolhas que faço pensando na conveniência de cada momento.
Cresci dentro de uma relojoaria, o negócio da família, e aprendi desde cedo o ofício de consertar coisas, qualquer coisa suficientemente pequena para ser posta sobre uma bancada: relógios muito raros e complexos e incontáveis bizarrices que, até chegarem às minhas mãos, muitas vezes, ninguém fazia a menor ideia de para que serviriam. Desmontar aqueles mecanismos, apreciando-lhes os detalhes construtivos, a sutileza dos movimentos, e desvendando-lhes os segredos por traz de certas complexidades aparentemente despropositadas, foi a minha escola.
Obviamente, eu tenho uma disposição acentuada para a percepção e o tratamento de detalhes, quero dizer, aqueles pequenos eventos, objetos e até comportamentos, ou mesmo frações deles que, por parecerem irrelevantes demais ou tediosos demais para merecerem alguma atenção, são voluntariamente ignorados pela maioria das pessoas ou, muitas vezes, nem são percebidos. Todavia, garanto que, ao contrário do que alguns possam pensar, isto nunca representou um fardo para mim, na verdade sou obcecado por estas pequenas joias desde muito jovem, é através delas que enxergo coisas interessantes que quase ninguém vê e percebo padrões onde a maioria só enxerga o caos. Este talento, ligado a um pendor da minha personalidade para certas tarefas, proveu o meu sustento durante muito tempo e, desgraçadamente, me conduziu até aqui.
Admito que vivo bem neste lugar, a comida aqui é boa e nunca repetem o cardápio do almoço, tenho uma televisão onde assisto os noticiários, possuo alguns livros, distraio-me com os meus pensamentos e faço muitas anotações em cadernos que vou empilhando, por data e com a lombada sempre voltada para mim, na mesa de cabeceira.
Quando tomo sol ou me exercito no solário, o Carlos sempre me acompanha, ele fica lá num canto, calado e de cabeça baixa, mas muito atento a tudo. É uma pessoa discreta -só sei o seu nome porque está impresso no crachá-, gentil e absolutamente inexpressiva, só me chama de senhor - assim mesmo, apenas pelo pronome e no tom mais indiferente que este pronome possa conter. Ele não me olha nos olhos, não é por medo, tenho certeza, é apenas receio de algum envolvimento, mas isso não me incomoda, na verdade eu o entendo. Aquele rapaz é a única pessoa por quem tenho alguma simpatia neste lugar: desde que vim para cá, durante as suas folgas, nunca vi alguém repetir-se, que fosse uma vez apenas, na tarefa de me servir.
Evito os cochilos vespertinos, ao invés disso, tomo um pouco de sol, alongo o corpo... e o dia segue sem sobressaltos ou ocorrências desagradáveis. Depois do jantar, costumo ler na cama, é quando adormeço suavemente, não tenho sonhos, somente a paz da total não-consciência.
Ao final da alvorada, porém, o inferno me assombra, é como se eu fosse outra pessoa, não no sentido de agir ou perceber as coisas de um modo diferente, não, é como se uma espécie de escudo fosse removida do meu entorno, torno-me vulnerável a sensações que, embora conheça -pois germinam em qualquer pessoa-, nunca preponderaram dentro de mim, exceto agora, nessas madrugadas quando eu fico extremamente alterado. Acordo com frio, pensando no tempo que me resta, me dou conta de que ele vai encurtando minuto a minuto e não consigo parar de pensar nisso. Procuro dormir novamente, concentro-me neste quarto pequeno e escuro e no seu silêncio quase absoluto, tento me isolar na bolha do momento, sentir-me seguro e no controle, mas a ansiedade, implacável, fura a bolha. Não paro de pensar. Exausto e sonolento, levanto-me da cama para, em seguida, deitar-me e tentar dormir novamente, ... e sigo assim, neste bate-volta, pelo resto da noite. Em tais ocasiões, sinto-me muito susceptível a toda porcaria que passe pela minha cabeça. Porém, quando as luzes lavadas do corredor são acendidas, a escuridão da madrugada começa a se dissipar e os sons suaves e rotineiros do dia surgem aqui e ali, a ansiedade diminui naturalmente.
Hoje, o Carlos trouxe-me o jantar às dezenove horas -quinze minutos antes do habitual- para que pudéssemos conversar um pouco sobre os procedimentos dos próximos dias, nada que eu já não soubesse.
Resolvi fazer uma marcação na folhinha que tenho fixada acima da cabeceira da cama.
ONZE DE MARÇO, QUARTA-FEIRA. Acordei de outra madrugada infernal faz pouco, sentei-me na cama, coloquei uma mão sobre cada orelha e os cotovelos apoiados nos joelhos: fiquei pressionando a cabeça com força até as luzes do dia reaparecerem -a posição fetal me ajuda a suportar este limbo miserável.
Tomei o café, li o jornal e arrumei o quarto. Durante o dia, a bendita rotina me absorve, a resignação me acalma e quase esqueço da noite mal dormida.
VÉSPERA. São 5h:12min e, novamente, me sinto muito incomodado. Hoje, a jornada da manhã será diferente: o Carlos virá me buscar daqui a pouco, farei alguns exames e logo após vou tomar o café, ler o jornal, arrumar o quarto, fazer algumas anotações e, depois, almoçar -será um almoço especial, eu mesmo o prescrevi, e até alguns requintes me foram permitidos.
Estou me preparando para o dia de amanhã, o dia que marquei na folhinha; ainda tenho muito a anotar, mas sei exatamente como vai acontecer. Não sei do ambiente, do seu arranjo, do “clima”. O Carlos não virá, tenho certeza. Pena, talvez gostasse de vê-lo. Mas, quem serão os meus acompanhantes afinal? Já os vi alguma vez por aqui ou virão de outro lugar? Quem vai assistir?
O DIA MARCADO NA FOLHINHA. Hoje, não arrumarei o quarto. Meus cadernos destoarão desalinhados sobre a televisão, meu pijama ficará ali mesmo, displicente sobre travesseiro; meus óculos – faço questão de não os usar-, vou deixá-los dentro do lavatório. Esta será a minha irreverente despedida.
Estão me levando ao ambulatório em uma cadeira de rodas, acabo de passar em frente a uma porta de vidro que registrou o meu reflexo pela última vez; as luminárias do corredor passam velozmente sobre a minha cabeça enquanto as rodas da cadeira vão marcando uma cadência de tensão e urgência ao se chocarem com emendas do piso. Sinto o fluxo contínuo que me arrasta impassível por uma sequência rápida e inexorável de momentos desde que saí do quarto: é como logo após o instante em que pulamos de um prédio muito alto, não há mais escolhas, nada mais existe ou importa além da expectativa do impacto.
Posto em uma cama sobre rodas, recebo dois cateteres no braço esquerdo. Deitado, sou levado para a sala no final do corredor, sei que três pessoas me aguardam lá. Entro na sala branca sob uma luz branca e ofuscante, não reconheço ninguém. Não há nenhum odor aqui, apenas um ar gelado que queima as minhas narinas. Um par de cortinas é arregaçado bruscamente e o som áspero das anilhas deslizando de um só golpe sobre o trilho me deixam irritado. Vai tudo muito rápido... Do outro lado, bem na minha frente, há uma plateia inexpressiva, parece que ninguém me vê. Sou ligado à máquina através dos cateteres, alguém ao meu lado faz um sinal com a cabeça e um líquido frio, levemente ardido, começa escorrer pelas minhas veias.
Relaxando aos poucos, me surpreendo em paz. Seguirei repetindo como um mantra até perder totalmente a consciência, fim.